Princípio da insignificância: conceito e requisitos. Por Wilton Moreira da Silva Filho
wiltonmoreira.com.br O princípio da insignificância tem aplicação no Direito Penal e gera a exclusão da tipicidade material, de modo que se afasta a incidência da lei a partir de uma interpretação restritiva da norma. A sua aplicação está condicionada à presença de determinados requisitos, entre os quais a mínima ofensividade da lesão ao bem jurídico e atualmente tem sido aplicado pela Justiça brasileira. A tipicidade integra os elementos do chamado fato típico, que está associado à noção de previsão genérica de determinada conduta pela norma penal à qual, se incriminadora, quando violada, é imposta determinada consequência, a denominada sanção penal. A norma penal indica a conduta humana que é reprovada ou exigida pelo direito e revela o bem jurídico que se protege. Quando violada, ou seja, quando a conduta que não se deve praticar é realizada ou quando se deixa de se adotar o comportamento exigido pela lei, a norma penal irá incidir sobre essa conduta. Ocorrendo a perfeita adequação desta àquilo que a lei prevê, de início, está-se diante da tipicidade penal. Segundo Greco (2005), a tipicidade penal divide-se em tipicidade penal formal e tipicidade conglobante. A tipicidade formal seria a adequação da conduta à previsão legal. Uma conduta se enquadraria perfeitamente ao texto legal. A conduta teoricamente violaria a norma penal porque se adequaria à sua previsão. A tipicidade conglobante levaria em consideração a antinormatividade e a tipicidade material. A respeito do assunto, Greco (2005) adverte: “Além da necessidade de existir um modelo abstrato que preveja com perfeição a conduta praticada pelo agente, é preciso que, para que ocorra essa adequação, isto é, para que a conduta do agente se amolde com perfeição ao tipo penal, seja levada em consideração a relevância do bem que está sendo objeto de proteção. Quando o legislador penal chamou a si a responsabilidade de tutelar determinados bens, como a integridade física e o patrimônio, não quis abarcar toda e qualquer lesão corporal sofrida pela vítima ou mesmo todo e qualquer tipo de patrimônio, não importando o seu valor.” Damásio de Jesus, citado por Estefam (2008), afirma que “esse princípio tem sido adotado pela nossa jurisprudência nos casos de furto de objeto material insignificante, lesão insignificante ao Fisco, maus-tratos de importância mínima, descaminho e dano de pequena monta, lesão corporal de extrema singeleza etc.” Assim, o princípio da insignificância ou bagatela, considerado pela doutrina como causa atipificante (SILVA, 2010), pode ser compreendido melhor a partir da atividade interpretativa dos tribunais, em decisões sobre matérias que envolvem leis diferentes, conforme julgados expostos a seguir: AGRAVO REGIMENTAL NO RECURSO ESPECIAL. CONTRABANDO DE MEDICAMENTO PARA USO PRÓPRIO. QUANTIDADE PEQUENA. AUSÊNCIA DE DOLO E INCIDÊNCIA DOS PRINCÍPIOS DA PROPORCIONALIDADE E, EXCEPCIONALMENTE, DA INSIGNIFICÂNCIA. APLICAÇÃO, IN CASU, DA SÚMULA N. 568/STJ. RECURSO DESPROVIDO. 1. Esta Corte de Justiça vem entendendo, em regra, que a importação de cigarros, gasolina e medicamentos (mercadorias de proibição relativa) configura crime de contrabando. 2. Todavia, a importação de pequena quantidade de medicamento destinada a uso próprio denota a mínima ofensividade da conduta do agente, a ausência de periculosidade social da ação, o reduzidíssimo grau de reprovabilidade do comportamento e a inexpressividade da lesão jurídica provocada, tudo a autorizar a excepcional aplicação do princípio da insignificância (ut, REsp 1346413/PR, Rel. p/ Acórdão Ministra MARILZA MAYNARD - Desembargadora convocada do TJ/SE -, Quinta Turma, DJe 23/05/2013). No mesmo diapasão: REsp 1341470/RS, Rel. Ministra MARIA THEREZA DE ASSIS MOURA, SEXTA TURMA, julgado em 07/08/2014, DJe 21/08/2014. 3. De outra parte, é certo que o art. 334, primeira parte, do Código Penal, deve ser aplicado aos casos em que suficientemente caracterizado o dolo do agente em introduzir no território nacional mercadoria que sabe ser de proibição absoluta ou relativa. Não se pode olvidar, ainda, o princípio da proporcionalidade quando se constatar que a importação do produto se destina ao uso próprio (pelas características de quantidade e qualidade) e não é capaz de causar lesividade suficiente aos bens jurídicos tutelados como um todo. A análise de tais questões, contudo, compete às instâncias ordinárias, soberanas no exame do conjunto fático-probatória, e não ao Superior Tribunal de Justiça, órgão destinado exclusivamente à uniformização da interpretação da legislação federal. (REsp 1428628/RS, Rel. Ministro GURGEL DE FARIA, QUINTA TURMA, julgado em 28/04/2015, DJe 12/05/2015). 4. Na espécie, as instâncias ordinárias reconheceram a inexpressiva lesão de duas caixas de medicamentos (uma para emagrecimento - 15mg - e uma para potência sexual - 50 mg), avaliadas em R$ 30,00. Ausência de dolo. Princípios da proporcionalidade e, excepcionalmente, da insignificância. 5. Incidência da Súmula n. 568/STJ: "O relator, monocraticamente e no Superior Tribunal de Justiça, poderá dar ou negar provimento ao recurso quando houver entendimento dominante acerca do tema". 6. Agravo regimental não provido. (AgRg no REsp 1572314 / RS AGRAVO REGIMENTAL NO RECURSO ESPECIAL 2015/0309249-1. Relator: Ministro REYNALDO SOARES DA FONSECA. Julgado em 02/02/2017) Já no sentido de sua inaplicabilidade (presença da tipicidade material), o Superior Tribunal de Justiça (STJ) decidiu recentemente: PROCESSO PENAL E PENAL. RECURSO ORDINÁRIO EM HABEAS CORPUS. PESCA EM PERÍODO PROIBIDO. ART. 34 DA LEI N. 9.605/1998. TRANCAMENTO DO PROCESSO-CRIME. SUPERVENIÊNCIA DE SENTENÇA CONDENATÓRIA EM RELAÇÃO A UM DOS RÉUS E CONCESSÃO DE SURSIS PROCESSUAL AO OUTRO. PREJUDICIALIDADE. ATIPICIDADE MATERIAL DA CONDUTA. INAPLICABILIDADE DO PRINCÍPIO DA INSIGNIFICÂNCIA. IRRELEVÂNCIA DO DANO AMBIENTAL NÃO DEMONSTRADO. RECURSO PARCIALMENTE CONHECIDO E, NESSA PARTE, DESPROVIDO. 1. Hipótese na qual o pedido de trancamento do processo restou prejudicado pela superveniência de sentença penal condenatória em desfavor do réu Rogério da Rosa Assunção e pela concessão do benefício do sursis processual ao réu Cleber Vieira Barradas. Não há qualquer interesse de agir na análise do juízo de cognição sumária do recebimento da denúncia, porquanto há novo título cuja cognição acerca da autoria e materialidade foi exauriente, bem como em razão da suspensão do trâmite processual pelo prazo de dois anos. 2. A jurisprudência desta Corte admite a possibilidade de aplicação do princípio da insignificância aos delitos ambientais quando demonstrada a ínfima ofensividade ao bem ambiental tutelado. Na hipótese em apreço, contudo, além de terem sido apreendidos 18,5kg de camarão com os réus, em período no qual sua pesca é proibida, foi utilizado apetrecho não permitido, qual seja, rede de arrasto de fundo, o que constitui óbice à aplicação do princípio da bagatela. Precedentes. 3. Recurso parcialmente conhecido e, nessa extensão, desprovido. (RHC 61930 / RS RECURSO ORDINARIO EM HABEAS CORPUS 2015/0174968-6; Relator: Ministro RIBEIRO DANTAS; data do julgamento: 15/12/2016; data da publicação/fonte: DJe 01/02/2017) Ressalta-se que no âmbito previdenciário o princípio da insignificância também é aplicado, contudo, a sua incidência se opera de forma diferente da esfera penal. Em matéria previdenciária, para a aplicação do princípio da insignificância há um determinado valor que funciona como parâmetro: R$ 10.000,00 (dez mil reais). A fundamentação jurídica de tal aplicação encontra-se no art. 20 da lei n. 10.522, de 19 de julho de 2002, que assim dispõe: “Art. 20. Serão arquivados, sem baixa na distribuição, mediante requerimento do Procurador da Fazenda Nacional, os autos das execuções fiscais de débitos inscritos como Dívida Ativa da União pela Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional ou por ela cobrados, de valor consolidado igual ou inferior a R$ 10.000,00 (dez mil reais).” Recentemente o Superior Tribunal de Justiça assim decidiu: CONSTITUCIONAL E PENAL. RECURSO ORDINÁRIO EM HABEAS CORPUS. APROPRIAÇÃO INDÉBITA PREVIDENCIÁRIA. TRANCAMENTO DO PROCESSO PENAL. EXCEPCIONALIDADE. PRINCÍPIO DA INSIGNIFICÂNCIA. PARÂMETRO DE AFERIÇÃO DA RELEVÂNCIA DA LESÃO AO BEM JURÍDIDO. R$ 10.000,00 (DEZ MIL REAIS). INAPLICABILIDADE DO VALOR MÍNIMO PARA AJUIZAMENTO DE EXECUÇÃO FISCAL (PORTARIA MF 75/2012). INCOMPATIBILIDADE TELEOLÓGICA COM A SEARA PENAL. CONDUTA MATERIALMENTE TÍPICA. NECESSIDADE DO PROSSEGUIMENTO DA PERSECUÇÃO PENAL. RECURSO DESPROVIDO. 1. A jurisprudência dos tribunais superiores admite o trancamento do inquérito policial ou de processo penal, excepcionalmente, nas hipóteses em que se constata, sem o revolvimento de matéria fático-probatória, a ausência de indícios de autoria e de prova da materialidade, a atipicidade da conduta ou a extinção da punibilidade, o que não se observa no presente caso. (STJ: RHC 58.872/PE, Rel. Ministro GURGEL DE FARIA, Quinta Turma, DJe 01/10/2015; RHC 46.299/SP, Rel. Ministra MARIA THEREZA DE ASSIS MOURA, Sexta Turma, DJe 09/03/2015; HC 294.833/SC, Rel. Ministro FELIX FISCHER, Quinta Turma, DJe 03/08/2015; STF: RHC 125787 AgR, Relator Ministro GILMAR MENDES, Segunda Turma, DJe 31/07/2015; HC 108168, Relator Ministro ROBERTO BARROSO, Primeira Turma, DJe 02/09/2014). 2. A Terceira Seção deste Superior Tribunal de Justiça, no julgamento do Recurso Especial Representativo de Controvérsia nº 1.112.748/TO, definiu o parâmetro de quantia considerada irrisória para fins de aplicação do princípio da insignificância aos crimes de descaminho, pacificando o entendimento no sentido de que o valor do tributo evadido a ser considerado é de R$ 10.000,00 (dez mil reais), conforme art. 20 da Lei 10.522/02. 3. Por ocasião do julgamento do REsp 1.393.317/PR e do REsp 1.401.424/PR, a Terceira Seção, firmou o entendimento no sentido da inaplicabilidade de qualquer parâmetro diverso de R$ 10.000,00 (dez mil reais), notadamente o de R$ 20.000,00 (vinte mil reais), previsto na Portaria nº 75/2012 do Ministério da Fazenda. Isso porque tal ato infralegal regulamenta o Decreto-Lei nº 1.569/77, cujo artigo 5º autoriza o Ministro da Fazenda a obstar as execuções fiscais economicamente inviáveis de créditos tributários de reduzido valor, e não a Lei nº 10.522/02. Os referidos diplomas normativos não ostentam, pois, a condição de normas revogadora e revogada, para fins de aplicação do princípio da insignificância, que tem sede eminentemente jurisprudencial, e não legal. 4. Não se trata de questão de mérito administrativo acerca do ajuizamento de execução fiscal, com paradigma no valor do crédito tributário para aferição da viabilidade econômica da execução, matéria estranha à seara criminal. O ponto que se controverte é o grau de lesão à ordem tributária e a relevância penal da conduta, que enseje a tutela do direito penal. A conclusão acerca desse tema não está atrelada aos critérios fixados nas normas processuais tributárias para o ajuizamento da execução fiscal, até porque o valor mínimo de R$ 20.000,00 (vinte mil reais) implica apenas efeitos processuais de suspensão ou impedimento de eventual execução, sequer culminando na extinção do próprio crédito tributário e, a fortiori ratione, não pode ser parâmetro para aferir a relevância da lesão ao bem jurídico tutela pela norma penal. 5. Como o ajuizamento da execução fiscal é regido pelos critérios de eficiência, economicidade e praticidade, o paradigma executivo fiscal é bastante pantanoso, pois pode ser relevado de acordo com o potencial de recuperabilidade do crédito e até mesmo pelas peculiaridades regionais do executivo fiscal, o que mostra o evidente despropósito em torná-lo método de aferição de tipicidade material. 6. O valor objetivo de R$ 10.000,00, adotado no julgamento do REsp 1112748/TO, é paradigma jurisprudencial erigido a partir de medida de política criminal, como sói acontecer na aplicação do princípio da insignificância, que subtrai da tutela penal os casos dotados de mínima ofensividade, ausência de periculosidade social da ação, reduzido grau de reprovabilidade e mínima lesão ao bem jurídico tutelado, corolários da fragmentariedade e subsidiariedade do Direito Penal. 7. O valor do crédito tributário objeto do crime tributário material é aquele apurado originalmente no procedimento de lançamento, para verificar a insignificância da conduta. Destarte, a fluência de juros moratórios, correção monetária e eventuais multas de ofício, que integram o crédito tributário inserido em dívida ativa, na seara da execução fiscal, não tem o condão de acrescer valor para a aferição do alcance do paradigma quantitativo de R$ 10.000,00. De fato, consoante as informações prestadas pela Procuradoria da Fazenda Nacional, o saldo devedor dos débitos nº 36.660.772-3 e nº 41.939.566-0, atualizados para novembro de 2015, totalizavam, respectivamente, R$ 24.630,30 e 15.278,73, entrementes, o valor a ser comparado com o paradigma jurisprudencial é de R$ 18.227,04. 8. Recurso desprovido. (RHC 74756 / PR RECURSO ORDINARIO EM HABEAS CORPUS 2016/0214783-3. Relator: Ministro RIBEIRO DANTAS. Data do julgamento: 13/12/2016. Data de publicação/fonte: DJe 19/12/2016) Por outro lado, Masson (2016) cita precedente do Supremo Tribunal Federal (STF), segundo o qual é aplicado o princípio da insignificância quando o valor do tributo devido não for superior a R$ 20.000,00 (vinte mil reais), no contexto dos crimes tributários e do crime de descaminho. Afirma o autor: “O princípio da insignificância é aplicável quando o valor do tributo devido não ultrapassar R$ 20.000,00. É o entendimento do Supremo Tribunal Federal”. Por conseguinte, verifica-se que a tipicidade material é levada em consideração na aplicação do princípio da insignificância e está associada à ideia de proporção da lesão ao bem jurídico tutelado pela norma, não sendo aplicável a lei àquelas condutas de pouca lesividade, ou seja, àquelas condutas de pouca relevância do ponto de vista penal, funcionando o princípio como “instrumento de interpretação restritiva do tipo penal”. De acordo com Prado (2005), “Através do princípio da insignificância (Roxin), devem ser tidas como atípicas as ações ou omissões que afetem muito infimamente um bem jurídico-penal. A irrelevante lesão do bem jurídico protegido não justifica a imposição da sanção penal, devendo ser excluída a tipicidade em casos de pouca importância”. Referindo-se ao entendimento do Supremo Tribunal Federal, Azevedo (2010) lista quatro “vetores na aferição do relevo material da tipicidade penal”, requisitos para o afastamento da tipicidade material: “a) mínima ofensividade da conduta do agente; b) nenhuma periculosidade social da ação; c) reduzidíssimo grau de reprovabilidade do comportamento; d) inexpressividade da lesão jurídica provocada.” Desse modo, parece correto dizer que o princípio da insignificância está relacionado à noção de tipicidade material e na aferição da possibilidade de sua aplicação é necessária a análise dos vetores (requisitos) da relevância material da conduta, conforme a doutrina e o entendimento dos tribunais. BIBLIOGRAFIA AZEVEDO, Marcelo André de. Direito penal - parte geral. Salvador: Editora Juspodivm, 2010. ESTEFAM, André. Direito penal 1 - parte geral. 4. ed. São Paulo: Saraiva, 2008. (Coleção Curso & Concurso). GRECO, Rogério. Curso de direito penal - parte geral. Rio de Janeiro: Impetus, 2005. MASSON, Cleber. Direito penal esquematizado - Parte geral - vol.1. 10. ed. São Paulo: Método, 2016. 1095 p. PRADO, Luiz Regis. Elementos de Direito Penal. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2005. SILVA, Davi André Costa. Direito penal - parte geral. Porto Alegre: Verbo Jurídico, 2010. 384 p. http://wiltonmoreira.com.br
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AUTOR:Wilton Moreira da Silva Filho ARQUIVOS
November 2024
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